Tuesday, May 15, 2007

O Pe. Gouveia e as Missões Populares




O apelo da Missão
Já quase se perde no tempo, mas o arquivo da memória ainda conserva as imagens dos dias em que os missionários do Coração de Maria passaram pela sua terra natal, na Madeira. Decorria o ano de 1946. Entre a multidão que se apinhava para ouvir os missionários, estava um adolescente de nome António Gouveia. Era um rapaz como tantos outros da terra. Nada de extraordinário o destacava. Contudo, como habitualmente sucede, a mesma mensagem transmitida a uma assembleia, é acolhida de diferentes modos por cada um dos ouvintes. O que para a grande maioria dos fiéis era apenas mais uma pregação, para aquele rapaz era o despertar vocacional. Ele sentiu em si um desejo de ser também missionário, de dedicar a sua vida, como aqueles padres, ao anúncio da Boa Nova onde Deus bem entendesse. E o desejo persistente fê-lo entrar em contacto com os missionários. Manifestou-lhes a intenção de se associar a eles naquele tipo de missões. Por escrito, confiou-lhes a sua vocação e esperou a resposta que nunca veio…
Algum tempo depois, o rapaz teve conhecimento de uma outra Congregação, também ela dedicada às Missões Populares, com residência no Funchal. Ajudado por terceiros, entra em contacto com os padres da comunidade e, aos 18 anos, deixou definitivamente a casa materna e o trabalho da terra para ingressar no Seminário de Oleiros, Felgueiras. Num espaço geográfico totalmente diferente daquele a que estava habituado, os estudos, o frio, os colegas e os professores iriam “formatá-lo” para a nova missão: ser missionário Vicentino. Terminados os estudos teológicos, foi ordenado em 1959 e, desde então, tem feito de tudo um pouco: trabalhou em várias ocasiões na formação dos candidatos ao sacerdócio, esteve em Moçambique, foi pároco, promotor vocacional (fundou o Seminário em Família, no Funchal), director espiritual do Seminário Diocesano do Funchal e Assistente dos vários ramos da Família Vicentina. Actualmente, aos 79 anos, é responsável pelas Missões Populares, a actividade pastoral que esteve na origem da Congregação da Missão, a actividade que é a “alma”, a razão de ser da existência da referida Instituição.

As Missões Populares
As Missões Populares em Portugal, realizadas pelos Padres Vicentinos (Lazaristas ou Padres da Missão), confundem-se com a própria história do crescimento e da consolidação Província Portuguesa da Congregação da Missão. Desde cedo, os primeiros padres e seus continuadores percorreram aldeias e vilas do país no intuito de renovar o ardor religioso das populações. A metodologia, no entanto, tem sofrido sucessivas alterações consoante o espírito da época e o contexto em que a Missão Popular se realiza. Noutros tempos, por exemplo, o principal motor das Missões era o missionário, o pregador. Hoje, segundo o Pe. Gouveia, o motor da Missão são os agentes locais, o pároco e alguns leigos. Na origem desta mudança gradual de um modelo de Missão Popular assente na concepção de uma Igreja de massas, Institucional e de Cristandade para uma Igreja de Comunhão, Povo de Deus e Ministerial esteve o trabalho de alguns confrades como os Padres Adelino Ornelas, Manuel Nóbrega e João Maria Barbosa.
A estrutura da Missão manteve-se, mas a aposta feita pelo Pe. Gouveia nos últimos anos tem incidido fundamentalmente na organização da Pré-Missão, isto é, na preparação dos leigos/animadores para a Missão, e na fase Pós-Missão, através da criação de um núcleo de leigos presidido pelo pároco que tem por finalidade prolongar a dinâmica da Missão no quotidiano da paróquia. Mas isso só ocorre quando a Missão é realmente assumida pelos agentes locais. Quando isso acontece, a paróquia organiza-se em diferentes comunidades e, nelas, a palavra de Deus é alimento, isto é, matéria de reflexão fomentada por uma dinâmica de grupo que determina o agir pessoal e comunitário. Neste sentido, salienta o Pe. Gouveia, a «Missão Popular é um contributo à paróquia na área da evangelização dos adultos, com catequeses sistematizadas e onde os leigos ocupam um lugar de relevo». Por isso, um dos seus trabalhos mais importantes tem sido a realização e publicação de novos temas para as várias catequeses, as quais são material indispensável para a continuidade do Pós-Missão.


Desafio à PPCM
Quando questionado acerca do empenho da PPCM, em geral, nesta área, a resposta do Pe. Gouveia não podia ser mais clara: «como estamos longe!». O seu sonho, segundo podemos deduzir do que nos disse, era transformar as zonas pastorais entregues aos Padres da Missão, em verdadeiras zonas de Missão: «Se a Província acredita que as Missões têm sentido e são uma forma válida e actual de pastoral, não deviam ser, os nossos espaços de acção, zonas alvo das Missões Populares? A nossa acção e Missão não deviam começar por aí, dando sentido ao que fazemos e sendo testemunho do que somos?».
Uma das vantagens das Missões Populares sublinhada pelo P. Gouveia é a instituição efectiva de uma comunidade ministerial, isto é, uma comunidade onde os leigos assumem um papel de liderança nas actividades da paróquia. E, em consequência, «os sacerdotes estariam mais libertos para outro tipo de trabalho, nomeadamente a Evangelização através das Missões. Haveria, assim, mais disponibilidade da parte dos confrades» – conclui.
Com as Missões Populares e a concretização da Igreja Ministerial nas zonas pastorais de que somos responsáveis, havia uma referência, um exemplo visível a apresentar à Igreja local. Os frutos da Missão seriam conhecidos e desejados nas paróquias sob a responsabilidade de sacerdotes diocesanos. Assim, já não nos podiam dizer, como disseram: «Tendes uma acção tão rica para a pastoral! Porque não a aplicais nas vossas paróquias?» E a incómoda pergunta continua à espera de uma resposta…


Ponta de Lança aos 79 anos
Como em todas as actividades que levou a cabo na sua vida, também agora, no limiar dos oitenta, continua a dedicar-se totalmente: «dou-me sempre a 100%» - disse-nos. E quem o conhece, ainda que discorde das suas ideias, não põe isso em causa: a sua dedicação é reconhecida e exemplar. Também nas Missões, porque acredita estar a desenvolver um projecto-piloto na Igreja e a contribuir para que Ela seja mais Povo de Deus e mais Comunhão do que hierarquia, o seu entusiasmo é bem notório: «Sempre tive vontade de abrir janelas para o futuro! – confessou-nos – mesmo quando os que me rodeavam achavam que tais ideias eram mais uma “Gouveiada”. Não sou de jogar à defesa, prefiro andar a correr à frente e ser um ponta-de-lança!».
O trabalho de renovação das Missões Populares é um trabalho de renovação da PPCM e uma proposta séria de renovação da Igreja à luz dos documentos do Concílio Vaticano II. E, neste aspecto, a vitalidade e o empenho deste homem de setenta e nove anos é para todos nós, membros da Família Vicentina, uma referência exemplar. O Pe. Gouveia, já bastante limitado pela idade, desafia-nos, com o seu exemplo, a prosseguir a Missão de Jesus na terra, a Evangelização dos Povos, uma Missão assumida e continuada na história por S. Vicente de Paulo e por outros tantos homens e mulheres. A continuação dessa Missão, actualmente, está nas nossas mãos. O desafio permanece actual: «Ide por todo o mundo e anunciai a Boa Nova».



Texto: Nélio Pita,CM
Fotografia: Nélio Pita e Jacinta Silva

Wednesday, March 7, 2007

A Ir. Celeste e o Refeitório Rosália Rendu

Quem sobe a grande escadaria de pedra basáltica que dá para a capela das Irmãs Vicentinas na casa Provincial, Campo Grande, Lisboa, dificilmente poderá adivinhar a vida que se esconde mesmo por debaixo dos seus pés. É quase num “vão de escada” que a Província Portuguesa das Filhas da Caridade realiza um projecto pioneiro em Portugal, 100% vicentino, de ajuda a uma população pobre e vulnerável: os imigrantes indocumentados.

O projecto de apoio aos imigrantes em condições de grande precariedade nasceu em Maio de 2005 e é fruto de um acordo entre a Companhia das Filhas da Caridade, o Serviço dos Jesuítas aos Refugiados e à ACIME (Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas). Chama-se Refeitório Beata Rosália Rendu (1786-1856) em memória de uma Filha da Caridade francesa que se distinguiu pelo serviço a favor dos mais desfavorecidos. É um espaço pequeno, mas acolhedor, no qual podemos encontrar, à hora do almoço, algumas dezenas de imigrantes. Estivemos no local onde conversámos com a Ir. Celeste, responsável pela organização da iniciativa. Quisemos dar a conhecer esta realidade àqueles que são vicentinos, bem como aqueles que estão envolvidos, directa ou indirectamente, neste tipo de actividades. Na pequena “Arca de Noé” que se esconde debaixo da monumental escadaria, ouvimos a Ir. Celeste:

«Alguns chegam cá com um ar que nem parece de seres humanos. Tomam banho, mudam de roupa, almoçam e levam comida para o jantar». Entre sorrisos tímidos e silêncios que escondem um certo embaraço, a Ir. Celeste descreve-nos situações dramáticas de jovens que chegaram a Portugal com uma mala cheia de ilusões e de promessas falsas: «pensavam que seria fácil encontrar um emprego, que poderiam rapidamente ganhar dinheiro para sustentar a família que ficou no país de origem, mas depressa se enganaram. Alguns abusam do álcool para apagar as mágoas e depois regressam ao Refeitório completamente transtornados. Já tive de chamar o INEM por causa de alguns que estavam em coma alcoólico. Outras vezes, tive de chamar a polícia. É uma tristeza ver gente assim…».

A Ir. Celeste conserva a simplicidade de uma camponesa. As mãos grossas, de uma pele áspera, denunciam um tempo em que era o braço direito do pai, em Sendim, Felgueiras, no cultivo das terras. Trabalhava de sol a sol, como um homem, até que aos 18 anos decidiu deixar tudo para se dedicar ao serviço dos pobres na Companhia das Filhas da Caridade. Esteve no Pousal, com deficientes profundos, depois em Alenquer e, posteriormente, na Madeira (Gaula) a trabalhar com idosos. Agora, com 25 anos de vocação, está encarregue da assistência aos imigrantes, uma nova forma de pobreza para a qual nem todas as irmãs estão sensibilizadas. Mas a Ir. Celeste não estranha o trabalho porque, na sua terra, desde cedo se habituou a ver os pobres comerem da mesma comida que lhe era servida por sua mãe. Actualmente é ela que serve os filhos e as filhas de tantos países e de tantas idades: proporciona-lhes refeições quentes e roupas limpas quando chegam sujos e molhados; assegura-lhes água quente para se lavarem; garante-lhes a organização dos espaços do refeitório e a sua limpeza para que não haja contágios. E é com a firmeza de uma mãe que acalma os ânimos daqueles que se exaltam facilmente por causa de um desentendimento. «Às vezes não é fácil manter um bom ambiente. São muito diferentes uns dos outros em muitos aspectos: os ucranianos, os africanos, os brasileiros, os indianos. Mas nós não fazemos qualquer diferença, mesmo no aspecto religioso. Aqui há um grupo maioritário de ortodoxos. Há também alguns muçulmanos a quem procuro garantir uma ementa sem carne de porco. Outros que são cristãos e, ainda outros, hindus. Respeito a religião de cada um e quando há “guerras religiosas” cá dentro, digo-lhes que todos somos filhos do mesmo Deus. Somos irmãos que devem viver como uma família».

Há pouco tempo, confessou-nos a Ir. Celeste, o Refeitório foi assaltado. Cegos pela ganância, rebentaram portas e janelas, desarrumaram roupas, vasculharam armários. No fim, levaram um computador (oferecido pelos familiares à Ir. Celeste pelos 25 anos de vocação) e algum dinheiro, pertença dos imigrantes. «Foi triste de ver – lamenta a Irmã – às vezes perguntam-me porque é que ainda continuo a ajudá-los depois do que aconteceu… Foi duro, até porque o dinheiro que tínhamos era pouco. E ficámos sem poder pagar os estragos causados. Estamos outra vez a recomeçar na esperança de que isso não volte a suceder».
Foi na “Arca de Noé” da Ir. Celeste que conhecemos Ktiuce. Está em Portugal há 18 meses com o marido. Tem um rosto de criança, mas já é mãe de uma menina de um ano e meio chamada Ana Júlia e está de novo grávida de seis meses. Diz-nos que a vida não lhe tem sido fácil. Quando deixou Minas Gerais, no Brasil, esperava encontrar outro mundo. E confessa a sua tristeza por ainda não ter um trabalho seguro. Gostaria de estar numa situação legal para viver dignamente em Portugal. Ana (nome fictício) também veio do Brasil a convite do marido. Quando cá chegou, caiu numa armadilha que nunca imaginara: o marido tinha uma casa de prostituição na qual a obrigava prostituir-se. A recusa de Ana levou a que ele a mantivesse presa, sozinha, em condições degradantes por vários meses. Quando se viu livre do lugar, entregou-se à polícia e actualmente está a ser acompanhada…


Laedish é de origem indiana. Cumprimenta-me efusivamente para logo pôr as mãos para o céu em sinal de agradecimento. Diz que fala português, mas apenas faz gestos: passa a mão pela roupa que veste e diz: «obrigado», apontando para a Ir. Celeste.


Durante o ano passado, foram servidas 10.492 refeições. Refeições completas, com primeiro e segundo prato. Refeições que alimentaram estas histórias, na maioria das vezes marcadas pela dor de quem se sentiu náufrago num mundo imenso, confuso e hostil. Refeições que mantiveram de pé aqueles que por serem de outra nacionalidade, experimentam, no quotidiano banal, a chaga da “estigmatização”. Homens e mulheres sem referências culturais e sociais, ora descriminados, ora injustamente explorados por “entidades patronais” sem escrúpulos.

«Eu sou portuguesa!», disse-me a Fátima (nome fictício) num sotaque perfeito, quando lhe perguntei de onde era. Mas a cor do cabelo, os olhos claros e a pele branca denunciavam a sua proveniência: é de leste, é russa. E ser estrangeira parece uma maldição de que nunca se poderá livrar. Será sempre assim, uma estranha, uma estigmatizada… Por isso, como ela, outras tantas centenas, sobretudo homens com idades à volta dos 30 anos, continuarão à procura, no “vão de escada”, de alimento, roupa, água quente e alguém que se disponibilize para ouvir as suas histórias, alguém que ampare as suas mágoas, que compreenda a impotência que eles experimentam ao sentirem-se excluídos de uma sociedade que julgavam ser a terra onde os sonhos antigos seriam realizados. Mas talvez amanhã seja melhor…. E a vida continua, só Deus sabe como!

(A obra depende das ajudas do Banco Alimentar, da generosidade das Filhas da Caridade e de alguns donativos. Aqueles que quiserem contribuir, podem enviar a sua oferta para Maria Celeste Lopes, Av. Marechal Craveiro Lopes, n. 10. 1749 – 011 Lisboa).



Texto e fotografia: Nélio Pita, CM